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Conformações líricas em Mário Quintana – Cicero Galeno Lopes

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Minha exposição está organizada na seguinte seqüência: A força da presença da lírica em língua portuguesa; na literatura brasileira; na literatura sul-riograndense; como ela aparece em Quintana. Como é em razão dos textos que Quintana vive, é aos textos que se dirigem nossas reflexões.

A história da lírica em língua portuguesa penetra marcantemente na própria forma épica. Os mais elogiados textos épicos em versos da língua portuguesa estão marcados por episódios líricos. Precisamente esses episódios líricos são os que mais agradam aos leitores, notadamente aos estudantes. Tanto o episódio de Inês de Castro (n’Os lusíadas), quanto o de Lindóia (n’O Uraguai), quanto o de Moema (no Caramuru) passaram a ser tão importantes para a compreensão da nossa épica, que por eles geralmente se iniciam os estudantes, ainda no ensino médio.

No Brasil, a lírica ajudou a construir os carateres da nacionalidade. Especialmente o fizeram especialmente Gregório de Matos, alguns árcades, românticos das três gerações poéticas, modernistas e pós-modernistas. Não é difícil citar, ao longo do desenvolvimento da literatura brasileira, muitos títulos de poemas e nomes de poetas, que se fixaram nesse núcleo temático, trabalhado liricamente.

Para os estudantes e para os professores de literatura, a classificação epocal dos autores quase sempre traz dificuldades: são consideradas questões teóricotécnicas de classificação. As obras, tomadas em separado, não as apresentam do mesmo modo, sob esse aspeto, nem em igual intensidade. No caso dos autores, essas classificações são dificultosas, porque, em resumo, um autor pode apresentar grande diversificação no estilo e até no ideário. Quintana, p. ex., estreou em livro 1940, mas produziu e publicou até seus últimos momentos existenciais. (Ele faleceu 1994, época literária que vimos denominando pós-modernista.) Tem sido praxe classificar os autores, quanto à localização em escolas, períodos e estilos de época, quando isso se faz necessário, no momento ideológico-estilístico abarcado pela parte da obra dele que se tornou referencial de seu nome. Também se considera o conjunto predominante de caraterísticas próprias da obra. Vale dizer: é costume localizar-se o autor no momento de maior representatividade da obra que produziu, de acordo com a crítica que o tenha estudado com cuidado e aprofundamento e que seja reconhecida por professores e ou pelo professor que o expõe e analisa, com os estudantes.

A partir de tais condições, é possível localizar Quintana entre os produtores de textos literários do modernismo da segunda fase (1930-1945). Desse modo, é comum vê-lo alinhado ao grupo integrado, além dele, por Cecília Meireles, Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Lila Ripol, Vinícius de Morais, entre muitos outros.

Segundo o prof Donaldo Schüler em A poesia no Rio Grande do Sul (1987), a épica só se realizou, no RS, com o surgimento de Antônio Chimango (1915) de Amaro Juvenal (Ramiro Barcelos). No “poemeto campestre”, quando o narrador anuncia que vai cantar (“Para les contar a vida / saco da mala o bandônio, / a vida de um tal Antônio / Chimango – por sobrenome”), já se percebe que a narrativa, ainda marcada de particulares elementos épicos, está ligada, pelas condições do narrador, ao canto, vale dizer, à lírica.

Se, ainda, acompanharmos o nascimento e a evolução da literatura do RS, poderemos ter idéia da tradição que Quintana usufruiu. Isso não significa dizer que o poeta esteve apenas ligado à produção lírica do RS. Quintana foi leitor multíplice. Foi observador das particularidades do mundo concreto-sensorial e de mundos íntimos individuais. Não é gratuito que na capa do fascículo Autores gaúchos, editado pelo IEL em 2006, comemorativo aos cem anos do nascimento do poeta, o título Mario Quintana se estenda para Poeta, caminhante e sonhador. Diferentemente do que pensam alguns que entendem que sonhar é ruim, que bom é apenas ter horizontes, é possível ver, no que denominamos sonhos, forma especial de horizonte. Trata-se de horizonte incomum: só olhando além e através dele é que se pode entender a dimensão da lírica do poeta homenageado neste encontro.

Em Arquitetura funcional de Apontamentos de história sobrenatural (1976), ele nos fala disso: “Não gosto da arquitetura nova / Porque a arquitetura nova não faz casas velhas / Não gosto das casas novas / Porque as casas novas não têm fantasmas / E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações vulgares / Que andam por aí… / […] / Tu nem sabes / A pena que me dão as crianças de hoje! / […] / As suas casas não têm porões nem sótãos, / São umas pobres casas sem mistério. / Como pode nelas vir morar o sonho?”

A literatura gaúcha nasceu na oralitura dos homens simples do campo, geralmente filhos e netos de ameríndias. Sem grandes perspetivas, ou porque não conheceram horizontes possíveis, ou porque esses lhes foram sendo arrancados por conquistas, possessões, esbulhos e estupros, a alternativa foi olhar pra dentro de si. Assim foi que essas pessoas simples, esses guascas, em auto-exame, narraram-se em textos de nossas primeiras manifestações verbais delineadas artisticamente. São os casos de O tatu, Chimarrita e o Lunar de Sepé, entre outros. Titubeantes entre a épica e a lírica, esses textos, como O tatu e Chimarrita fizeramse, além de narrativas, cantigas, gêneros rítmicos e danças.

A singeleza aparente de que se revestem essas narrativas chegou à simplicidade aparente que percorre a maior parte da obra quintaniana. O poeta de Alegrete sorveu nos mates da infância, certamente, essas seivas (ainda que ele nunca tenha tomado mate). Parece dizer um pouco dessa simplicidade aparente, eis, p. ex., a Pequena crônica policial: “Jazia no chão, sem vida… / E estava toda pintada! / Nem a morte lhe emprestara / A sua grave beleza… / Com fria curiosidade, / Vinha gente a espiar-lhe a cara, / As fundas marcas da idade, / Das canseiras, da bebida… / Triste da mulher perdida / Que um marinheiro esfaqueara! / Vieram uns homens de branco, / Foi levada ao necrotério. / E quando abriam, na mesa, / O seu corpo sem mistério, / Que linda e alegre menina / Entrou correndo no Céu?! / Lá continuou como era / Antes que o mundo lhe desse / A sua maldita sina: / Sem nada saber da vida, / De vícios ou de perigos, / Sem nada saber de nada… / Com a sua trança comprida, / Os seus sonhos de menina, / Os seus sapatos antigos!” Quintana foi (pessoalmente) e é (literariamente) poeta urbano. Nenhuma urbanez, no entanto, elide as primeiras águas sobre as quais planou Deus (usando imagem de Armindo Trevisan em Oração por uma criança), engendrando os mundos exteriores e interiores das crianças que depois são mulheres e homens.

“Súbito vimos ao mundo / e nos chamamos Ernesto / Súbito vimos ao mundo / e estamos / na América Latina” – escreveu Ferreira Gullar, em Dentro da noite veloz, uma ode a Che Guevara. Com as devidas diferenças, podemos dizer algo semelhante a respeito de Quintana. Algo como – nascemos no pampa e nos chamamos Mário. Do pampa largo a Porto Alegre, para sempre, e a outras paragens, de passagem, o poeta soube escolher a forma de expor-se, de dizer o mundo como o via e dizer o mundo que interiormente vivia. Com isso nos ajuda a explorar-nos em ângulos obscuros ou menos claros, que todos carregamos.

Quintana aparenta simplicidade, mas não é assim tão simples. Por esse motivo, vou preferir usar aqui o termo simpleza (e não simplicidade) pra qualificar um dos aspetos constitutivos da forma quintaniana. Ele próprio encontrou maneira de dizer isso, em Canção de barco e de olvido, do livro Canções (1946): leio a terceira estrofe: “Que eu vou passando e passando, / Como em busca de outros ares… / Sempre de barco passando, / Cantando os meus quintanares…” Poucos ouviram isso. Até que alguém, que morava no centro político do país, na época (nada menos que vinte anos depois de Quintana ter publicado esse texto), e que se chamava Manuel Bandeira, lhe deu eco. Usou o substantivo (quintanares), e muitos então ouviram.1 Os quintanares são densas composições aparentemente simples de Quintana. O poeta pernambucano possivelmente entendeu que essa forma pode dizer, com alguma precisão, o que, de outros modos, se diria (apenas) textos, ou poemas, ou poemas-frases, ou frases-poemas, ou poemas em prosa, ou prosa poética do poeta gaúcho. Os quintanares são o jeito peculiar de Quintana de explorar o universo poético. Esses textos não são apenas achados poéticos: são construções poéticas sui generis. Essa foi busca consciente dele. No quintanar A voz (de Caderno H, 1973), escreveu: “Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras”. Essa parece ser a razão de essas composições exigirem nomenclatura especial para serem designadas com alguma clareza.

Há nelas às vezes carga irônica: os ironistas são tristes – escreveu alguém cujo nome não me lembro com certeza. Os sonhadores provavelmente de modo análogo o sejam.

Há nelas carga hilariante: os que riem do mundo riem de si próprios e por isso também são geralmente tristes. Parece bastante improvável que alguém possa isolar-se totalmente para rir apenas dos outros.

Há nelas carga especulativa sobre minúcias das coisas do mundo; para buscá- las, a introspeção transforma quem observa em observador um tanto desiludido com o esperado aperfeiçoamento do interior humano: por isso os introspectivos são igualmente tristes. O que se designa como progresso se mostra uma falácia, porque só atinge tecnologias, que, ainda assim, só são dominadas e usufruídas por minorias. Tampouco dá notícias de que a humanidade tenha se tornado mais tolerante ou mais amiga ou menos gananciosa e inescrupulosa na busca de, quase sempre, mesquinhas vantagens lucrativas.

Há nelas galhofa e seriedade. Os galhofeiros simultaneamente sérios também são tristes, conforme se pode depreender da leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas. (Machado de Assis, arguto observador, ironista refinado e artífice cuidadoso, pelo que lemos nele, nada tinha tampouco de arroubos nem de grandes alegrias explícitas.)

Quero concluir, com as reflexões até aqui expostas, que a lírica de Quintana titubeia quase sempre entre o lírico simplesmente e o lírico algumas vezes de gosto amargo. No quintanar que intitulou Cartaz para uma feira do livro, escreveu ele: “Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem”. Vamos pensar um pouco sobre isso. Quem são os analfabetos? – parece perguntar-se ele: os que não lêem ou os que lêem meras letras, em oposição aos que lêem nas letras o texto e o mundo, essa relação inseparável para a penetração no ambiente efetivo do texto literário. Os que lêem nos textos as letras e o mundo aprendem que é impossível deixar de ler os textos e o mundo. Aprender a ler é outra inquirição que se impõe no cartaz de Quintana: que é aprender a ler? Ler superficialmente sobre as letras – “leitura fluviante, flutual”, como preferiu escrever Melo Neto em Catar feijão – não pode mesmo levar a novas e mais aprofundadas leituras. Ler fluviante e flutualmente não pode tampouco constituir efetiva leitura, como anteriormente ficou tangenciado. Não a pode constituir, porque, para ser tal (leitura propriamente dita), não pode divorciar o mundo em que se vive do mundo que se lê. Ler subentende participar duplamente, entre o que se vive e o que se lê e escreve. Por tudo isso, os analfabetos de Quintana não podem mesmo ler, porque não se leituraram; apenas de alfabetizaram, vale dizer, tão-somente se letraram.

A questão do texto como reflexão, produção e leitura não passou despercebida pelo nosso poeta. Em A coisa (de Caderno H), ele escreveu, em forma prosaica: “A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra, e o leitor entende uma terceira coisa…. e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita”. Esse brevíssimo texto (de único período) identifica com clareza a simpleza reflexiva de Quintana: sua penetração em questões teóricas da concepção, da construção e da recepção do texto literário. Isso implica falar-se em expressão e interpretação, modo peculiar de atuação nas e com as artes; portanto, na e com a literatura.

Entre tantas maneiras de ver e proceder, ao invés de exaltar-se e ou tentar inserir-se no chamado de mundo prático, Quintana refugia-se no universo onírico da lírica. Assim, no Poeminho do contra, de Caderno H, marcou nos leitores sua resposta aos que atravancam nosso caminho (“Todos esses que aí estão / atravancando o meu caminho, / Eles passarão… / Eu passarinho”). Não se lê aí apenas passarinho como mero predicativo do sujeito. Passarinho é também verbo (passarinhar). Passarinhar significa, entre outras possibilidades, levar a vida sem compromissos. Lembremo-nos, ainda, de que no pampa se classifica de passarinheiro o cavalo de montaria que brinca andando (que passarinha), que tem lindo andar, que não é totalmente confiável como manso para quem o monta. Passarinho é, ainda, a magia do sonho humano de ser como os pássaros, “que não semeiam nem colhem”, apenas se alimentam, para usufruir o vôo e superar o chãochão. Há, nessa passagem, outrossim, a sacralização do estado de espírito lírico. Haja vista que o termo sacro (sagrado) se originou da forma árabe sacr, que designa o falcão, ave que voa alto, que se perde (do olhar) no espaço aéreo. Eis aí, a par da hilaridade e da simplicidade aparentes, a simpleza da profundidade. Mais que apenas profundidade, eis aí a marca da polissemia caraterizadora do discurso literário: a aparente fragilidade (dos pássaros) é a permanente beleza própria e o encanto deles, aos olhos e ouvidos dos que aprenderam a vê-los, escutá-los e admirá-los, vale dizer, aos olhos e ouvidos dos que se leituraram na textualidade do mundo.

Impõe-se, neste momento destas nossas reflexões sobre a obra quintaniana, a presença do poema O pardalzinho, de Manuel Bandeira, de quem Quintana foi leitor e amigo: “O pardalzinho nasceu / Livre. Quebraram-lhe a asa. / Sacha lhe deu uma casa, / Água, comida e carinhos. / Foram cuidados em vão: / A casa era uma prisão, / O pardalzinho morreu. / O corpo Sacha enterrou / No jardim; a alma, essa voou / Para o céu dos passarinhos!” Sem nos determos em observações detalhadas, é imediatamente detectável no poema a tristeza pela brutalidade da violência física (“quebraram-lhe a asa”) e pela brutalidade contra a integridade emocional (roubaram-lhe a liberdade). (Não causa estranheza a referência à emocionalidade, porque o poema não se dirige a pássaros, mas a leitores.) O pardalzinho do poema é um passarinho. O termo passarinho, anteriormente comentado, encontra eco no pardalzinho que foge pro céu, pra voltar a ser livre. As brutalidades que lhe são perpetradas transformam-se em Quintana na simbologia de quem não é entendido em suas aspirações nem no modo de ver e viver o mundo caraterístico da lírica. “O céu dos passarinhos” é um não-lugar, onde se encontram os sonhos de todos que sonham com a liberdade de ser como são.

Referências

BANDEIRA, Manuel. O pardalzinho. Disponível em Jornal de poesia: www.revista.agulha.nom.br/belo.html. Acesso em 17/5/2006. CAMÕES, Luiz de. Os lusíadas (1572). Porto: Porto [s. d.].

DURÃO, J. de Santa Rita. Caramuru (1781). São Paulo: Martin Claret, 2003.

FERREIRA GULLAR. Dentro da noite veloz. Antologia poética. São Paulo: FontanaSummus, 1977.

GAMA, Basílio da. O Uraguai (1769). Obras poéticas de Basílio da Gama. Ensaio e ed. crítica por Ivan Teixeira. São Paulo: USP, 1996.

JUVENAL, Amaro. Antônio Chimango. Poemeto campestre (1915). Porto Alegre: Globo, 1961.

LOPES, C. G. O sagrado e a razão crítica: questões de literatura. Artexto – revista do departamento de Letras e Artes, FURG, Rio Grande, v. 9, p. 93-98, 1998.

QUINTANA, Mario. Cadernos H. Porto Alegre: Globo, 1973. _. Mario Quintana. Porto Alegre: IEL, 2006. (Autores gaúchos.) _. Prosa e verso. (Compilação do autor.) Porto Alegre: Globo, 1978.

SCHÜLER, Donaldo. A poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto-IEL, 1987.

TREVISAN, Armindo. Oração por uma criança. O ferreiro harmonioso. Porto Alegre: Globo, 1978.

Cicero Galeno Lopes Dr em Letras

www.cicerogalenolopes.com

Esse texto foi lido durante vigência do Projeto Centenário Mario Quintana: Promoção do Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, Porto Alegre –16/8/2006 – Auditório Barbosa Lessa.

Cicero Cicero Galeno Lopes.