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A entrevista de Cyro Martins* – Cicero Galeno Lopes

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O livro de contos de Cyro Martins, A entrevista, como saído em 1968 pela editora Sulina de Porto Alegre, contém dez contos. Há contos de temáticas e ambientação urbanas e há contos de temáticas e ambientação rurais. Mais precisamente dito, campeira, como nós entendemos esse adjetivo. Quase todos privilegiam preponderantemente trabalho analítico da interioridade humana. Provavelmente, o mais tenaz desses contos seja Você deve desistir, Osvaldo. Com tenaz, quero dizer constante sobre a observação psicológica dos personagens, especialmente sobre o protagonista, coerente na proposta que expõe, persistente sobre o eixo narrativo, como teoricamente o conto deve ser, denso na tessitura. Algo com a dramaticidade minudente da narrativa de Raul Pompeia, que Cyro cita no primeiro conto, o que intitula o livro.

Na minha leitura, é uma aula de conto. Algo assim como Poética de Manuel Bandeira é para o Modernismo brasileiro em versos. Naquela linha de Profissão de fé do Bilac, Oferta do Wamosy, Mundo pequeno de Manoel de Barros.

Quero contudo me achegar a outro conto. Um de temática campeira, em que Cyro é comprovadamente imbatível no nosso Modernismo. Me refiro a É bicho mau, o homem. Esse conto toma como epígrafe “ – Cuê-putcha!… é bicho mau, o homem”, doutro conto, Boi velho, do autor de referência pré-modernista maior no Brasil, em prosa, e instaurador da exponencial narrativa curta na literatura sul-rio-grandense.

“Foi numa das férias do tempo da escola que ouvi este causo […]” – assim se abre É bicho mau o homem, sétima narrativa da coletânea de contos A entrevista. Depois de apresentar o contador do causo, o narrador explica que o gaúcho Fulgêncio Nunes viera à procura do “menino”, que sabia escrever, que é o personagem-narrador do texto. O narrador diz que “conhecia desde guri o Fulgêncio Nunes”. Os significados de guri e menino distanciam-se um pouco, na semântica do conto. Guri tem menos idade. Na fala do Fulgêncio, “o menino” era quem dominava o lápis e já vivia sozinho na capital. Na campanha da fronteira, ainda hoje, ser guri do fulano diz apenas que é mais moço que fulano, geralmente, com relação ao pai.

Chamava-se, pois, Fulgêncio Nunes o homem que precisava contar o causo. Vinha para que o menino assentasse nas escritas o enredo que lhe que teimava na memória e não o deixava descansar.

Fulgêncio significa fulgurante. Nunes é o sobrenome também do Blau, aquele que narra Boi velho, conto simoniano já mencionado, que dá epígrafe ao que aqui nos ocupa. O substantivo nunes tem duas acepções possíveis de base etimológica: número um e ímpar ou testemunha, aio e pai. No caso do conto do Cyro Martins, Nunes é principalmente testemunha. Ele conta o que viu e, de algum modo, propiciou o acontecimento, ou seja, atuou como aio e parcialmente o viveu. A questão que o aflige é o homem, nos seus internos insuspeitos ou dormidos, que de vereda se acordam e podem danar. Não foi o que se passou com Blau, o posteiro “que só tinha de seu o facão, o cavalo gordo e as estradas”? Não foi ele que saiu à procura do boi barroso do destino, difícil de laçar? Não foi a palavra que lhe faltou na hora das sete provas e por isso perdeu o rumo da “rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo”? O substantivo Blau tem também dois significados etimológicos: azul (na heráldica) e confuso, atrapalhado, enredado.

Não se encontrava ainda sem entender bem o que ocorrera na trama do causo o outro Nunes, o Fulgêncio, e por isso tinha necessidade de contar? Falando, talvez o compreendesse pouco melhor, como tentaram, além de Blau, Bentinho-Dom Casmurro, Riobaldo e tantos outros; tendência também da fala psicanalítica. Quem sabe o “menino”, ao assentá-lo na escrita, não ajudaria a desvendar essas tramoias das reações, surpresas e iniquidades de adentros humanos?

Como o conto conta um causo, Cyro lhe aplicou a técnica dos causos em vários momentos. Por isso o narrador já esclarecera no início da narrativa que o contante do conto oral “gostava de conversar, e a sua prosa, sem ser cativante, agradava, embora gaguejasse um pouco por vezes e intercalasse frequentemente um compreende sem propósito”. As intercalações nos causos têm pelo menos três finalidades: (1) interromper brevemente a sequência para observar e gerar interesse, (2) quebrar a ameaçadora monotonia do andamento e (3) ajudar a memória e a imaginação, já que os causos partem de acontecidos (efetivos ou supostos), mas são tecidos pela imaginação e narrados de 3 improviso. Por vezes, o fim pode não parecer fim, nem o começo tem compromisso de ser começo.

Essa é uma face dos causos nos contos que também tentei escrever e que o prof Appel teve a coragem de publicar. Outra face é o perfil ideológico-narrativo de Cyro Martins, de olho na sorte desprotegida dos desafortunados e preocupação com ela e com eles. Ele os examinou sendo expulsos dos campos largos, de poucos donos.

Os contos que tentei escrever pra os três livros editados pela Movimento os tomam já nas periferias urbanas, vilas e vilarejos, adaptados ou em adaptação, conformados ou em dúvida sobre o que fazer do que lhes resta de vida. Eles são os sem rumo, os que ficaram sem cavalo, os que se perdem nas furnas escuras dos sete sendeiros, que dão nos tremedais. Appel, ao lê-los, me ajudou a comprovar que era isso mesmo que eu tinha feito.

Como nos causos, essa foi uma interrupção, pra parecer que eu tinha terminado. Assim também, Fulgêncio foi “dando tempo pras ideias se juntarem de novo, porque tinham se esparramado com a barbaridade daquele sogaço. Compreende, menino?”

Depois do “ – Compreendo, sim, senhor” do “menino”, Fulgêncio Nunes confirmou: – “Foi fato verdadeiro!” A formação psicanalítica e a habilidade literária do autor fulguram na finalização da narrativa:

Hoje, um incidente insignificante, um desses nadas que nos acordam mundos, me fez evocar a sua figura e, junto, a história que me contou, numa tarde de mormaço, à sombra de um oitão de venda de campanha, numa das minhas últimas férias de estudante. Persisto na ideia de que aquele Pedro [o bicho mau do título], que talvez por muitos anos permanecesse apagado na memória de Fulgêncio, e que só reapareceu na hora das decepções, valia mesmo para ele como um símbolo. Com uma diferença, entretanto, no meu juízo de agora. Fulgêncio não sabia disso. Muito obrigado pela gentileza da atenção.

Cicero Cicero Galeno Lopes.

www.cicerogalenolopes.com

Obs.: Esse material foi lido em mesa-redonda promovida pela Editora Movimento e pelo CelpCyro, no Santander Cultural, em Porto Alegre, em 8/8/2015.