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Vinte frases de Donaldo Schüler e outras reflexões – Cícero Galeno Lopes

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1 – Literatura

1.1) “A literatura não copia o que lhe é exterior. Através dela, o homem reflete imaginativamente sobre si mesmo e sobre sua relação com o que co contorna” (APRS, p. 25).

1.2) “O poeta não cai, porque, ao contrário do que se pensa, pisa com os pés no chão. Não teme a queda, porque leva vida degradada. Mexe com os fundamentos. Tem a natureza do tatu” (APRS, p. 142).

1.3) “A palavra poética deve produzir um outro mundo que conteste este, que revele o que se retrai à observação de todos os dias, que enriqueça o observado. O que ela não pode é ater-se à nomeação pura e simples” (APRS, p. 159).

1.4) “Ao criador repugnam as frases feitas” (APRS, p. 181).

1.5) “A literatura é uma arte infernal. Floresce longe da perfeição” (APRS, p. 215).

1.6) “Pensamos que o primitivo é o texto poético; o discurso lógico se desviou dele” (APRS, p. 325).

1.7) “A arte não acompanha a história; ela faz história” (TR, p. 12).

1.8) “Inventividade e só ela nos coloca no caminho das coisas que são reais” (APRS, p. 68).

1.9) “O narrador anuncia o fixo, mas é do instável que fala. Nem mesmo a natureza, com suas leis, comporta-se coerentemente” (TR, p. 14).

1.10) “Carlos Fuentes pensa que a América Latina é um continente de textos sagrados a exigir uma profanação que dê voz a quatro séculos de linguagem sequestrada, marginal e desconhecida” (TR, p. 21).

1.11) “A linguagem dos descobridores [vá lá] [possessores] mantém sobre o Brasil um domínio mais permanente do que o político” (TR, p. 23).

1.12) “ […] o romancista preocupado em anular o tecido verbal para melhor apanhar o observado é infiel a seu ofício” (TR, p. 77).

1.13) “A arte romanesca distancia-se da realidade para ver melhor […]” (TR, p. 77).

2 – Sobre a literatura no RS

2.1) “A poesia desenvolve-se no RS com certa autonomia. […] A constatação disso nos leva a buscar pra literatura rio-grandense uma periodização determinada por ela mesma. Partindo do pressuposto de que a literatura se mantém relação dialética com o circundante, ligamo-la a preocupações locais” (APRS, p. 9).

2.2) “O homem [no RS] começa a inventar os recursos para compreender e dominar o espaço” (APRS, p. 13).

2.3) “Levantamos a hipótese de que O tatu se constituiu em torno de um núcleo central formado pelos oito momentos destacados [na análise presente no livro]. Esse núcleo repete-se no modelo das narrativas populares espalhadas em todas as regiões do globo” (APRS, p. 21).

2.4) “Tatu parece ser um disfarce habilmente elegido para fazer circular, na inocente máscara de um bicho, agudo drama da classe oprimida, que na referência direta não seria tolerado” (APRS, p. 23).

2.5) “Sustentamos a necessidade de se dar maior atenção à nossa poesia popular” (APRS, p. 34).

2.6) “O que Simões Lopes Neto já fizera no conto, criando o contador de histórias Blau Nunes, Ramiro Barcelos repete na poesia. Com este recurso o autor dos Contos gauchescos projetou a linguagem regional para além das fronteiras. O acerto da decisão foi consagrado, quando Guimarães Rosa fez o jagunço Riobaldo narrar histórias de jagunços na linguagem do sertão” (APRS, p. 109).

2.7) “Para ele [Álvaro Moreira] como para outros, o movimento de 22 não representou novidade, por já vir praticando há muito o que os inovadores de SP ruidosamente apregoavam” (APRS, p. 127

Desenvolvimento

Nas minhas anotações, constam 27 obras publicadas por Schüler: 18 ensaísticas, 7 narrativas ficcionais, duas em versos. A estreia se deu em 1972, com Aspectos estruturais da Ilíada pela editora da UFRGS. A segunda estreia, com texto ficcional, ocorreu em 1982, com A mulher afortunada, pela Movimento. A terceira estreia, narrativa em versos, foi em 1984, com Martim Fera, também pela Movimento. Não estão aqui computadas as participações em obras coordenadas por outrem nem publicações em periódicos.

Com relação ao trabalho crítico e teórico de Schüler, entre dezenas de contribuições relevantes, faço questão de destacar pelo menos dois itens.

O primeiro diz respeito aos estudos sobre a formação da literatura do RS. Especialmente, esses estudos encontram-se em A poesia no Rio Grande do Sul (Mercado Aberto; IEL, 1987). Nessa obra, toma-se contato com formulação teórica fundamental para a compreensão da formação da literatura no RS. Tratase da teorização entre o texto arcaico e o texto monárquico. Texto arcaico é o das origens. A partir dele constroem-se os textos basilares. São as falas primeiras e originais. (Cabe lembrar que Mikhail Bakhtin usou o termo arcaica para designar os textos primevos formadores das literaturas antigas, especialmente da grega. Segundo o teórico russo, toda literatura retorna continuamente à arcaica, para parcialmente modificá-la e nela fortalecer-se.) Estão na ordem dos textos gaúchos arcaicos, segundo Schüler, as narrativas populares versificadas (nomeação dada por Schüler ao que anteriormente era denominado cantiga folclórica), como O tatu e Chimarrita, as mais conhecidas. Nas palavras do autor, “o texto arcaico recupera o vigor das origens” (APRS, p. 65). Ainda, textualmente, do autor: “O texto arcaico se reconhece por oposição ao texto monárquico. Chamamo-lo arcaico por brotar das origens” (APRS, p. 50).

Essas reflexões a respeito do texto arcaico teorizado em APRS facilitam a compreensão dos motivos do aparecimento do rimance O tatu (Movimento, 1982). Augusto Meyer já o tinha mencionado como exemplo de rimance aqui desenvolvido. Estava-se preparando, portanto, o nascedouro de O tatu, provavelmente a obra mais marcante do autor.

Texto monárquico, diferentemente, é o que reelabora o observado e o distorce, em discursos alterados pelo olhar urbano ao mundo primitivo. O texto monárquico é o do enaltecimento sem equilíbrio e da bravata. Nas palavras do texto, “o texto monárquico é grandiloqüente, retórico” (APRS, p. 47). “[…] não floresceu antes da constituição dos núcleos urbanos” (APRS, p. 48). Sobre a formulação do discurso monárquico, uma frase de Schüler diz quase tudo: “O texto monárquico não tolera o uso da linguagem ordinária” (APRS, p. 48). O adjetivo para classificar esse tipo de texto, Schüler foi buscar na expressão monarca das coxilhas, de uso corrente ainda na primeira metade do século 19. A figura do monarca das coxilhas tem sido identificada com o gaúcho idealizado.

De acordo com essa teorização, a literatura do RS começa com as cantigas populares versificadas, especialmente com O tatu. Em decorrência dessa conclusão, pode-se falar em início da expressão verbal no RS aí pelos anos 30 do século 19. Coincidentemente, ou não, o Brasil de então começava a experimentar-se nas formas românticas de expressão. Talvez não seja apenas coincidência, já que os românticos entendiam por nação cada grupo cultural, e o RS entende-se até como grupo cultural com algumas especificidades. Disso e de outras razões, ideológicas, nasceram os países sul-americanos e desencadeou-se a Revolução Farroupilha, cuja maior legado talvez seja ter feito a paz com o governo central do Brasil e, por isso, ter feito o RS integrante definitivo do Brasil.

O segundo item do meu destaque é a referência que Schüler faz frequentemente, a um tempo curiosa e restauradora, à natureza, como matriz do pensar e do agir humanos. Acima, citei a passagem “o narrador anuncia o fixo, mas é do instável que fala. Nem mesmo a natureza, com suas leis, comporta-se coerentemente” (TR, p. 14), que cabe no caso. Especialmente: “se a natureza é caprichosa, em que se apoiam os sistemas rígidos?” (APF, p. 59). Coerentemente, essa concepção está expressa em estudo a respeito da obra de Machado de Assis, para quem

[…] isso de método, sendo, como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão. É como a eloquência, que há uma genuína e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha (MPBC, cap. 9).

Em conclusão, chamo a atenção ao fato de Schüler ter conseguido mostrar outra possibilidade de olhar à reflexão e à ação. Talvez não seja bem dizer outra: conseguiu desvincular a reflexão séria e profunda do academicismo fechado e relacioná-la à vida que se observa com os sentidos. Desvinculou o procedimento de propostas simplesmente teóricas. Soube ver a natureza como ponto de partida da reflexão e da ação.

Com relação ao trabalho propriamente literário, pelo menos uma observação geral pode ser feita. Schüler criou uma poética de reconstrução, baseada no dialogismo. Essa poética está marcada pela inventividade e simplicidade.

Chamo-a de poética de reconstrução, porque se mostra como tal tanto nos títulos como na técnica, como no desenvolvimento dos textos. Os títulos e os textos de O tatu, Chimarrita, Faustino, Pedro de Malas Artes, Refabulando Esopo e Martim Fera falam por si. Em A mulher afortunada percebe-se a técnica do texto perdido para a introdução. Em Império caboclo, aparece a do corte temático, que pretende surpreender o leitor com mudança do rumo narrativo. Os procedimentos dialógicos são propositados. Quem lê o rimance O tatu só pode fazê-lo dialogicamente com a narrativa folclórica e com a tradição ibérica do rimance, mas o rimance O tatu é autônomo na sua constituição. De modo análogo, se fará a leitura de Chimarrita com a Chimarrita popular; Faustino, comFausto; Pedro de Malas Artes, com as várias variantes de Malasarte; Refabulando Esopo… é óbvio; Martim Fera, com Martim Fierro.

Relativamente à produção propriamente literária do autor, tentarei comentar uma tendência facilmente observável: a poética de reconstrução. A poética de reconstrução de Schüler constrói-se dialogicamente. Nela se constata a marca apontada por Bakhtin (1981, p. 91) como indispensável para a preservação da arcaica: a renovação ou atualização. Vale isso tanto para os gêneros como para os estilos discursivos. Só esse trabalho justificaria a qualificação da obra do homenageado de hoje. Diga-se de passagem: apoiado ainda em Bakhtin, é possível verificar o que o teórico russo chamou de cosmovisão carnavalesca da literatura, pelo menos em algumas das obras. Segundo o teórico russo, “[…] a cosmovisão carnavalesca […] desconhece o ponto conclusivo […]: aqui todo fim é apenas um novo começo” (1981, p. 143). Como se pode notar, isso se entronca com a reconstrução. O fenômeno da continuidade se mostra não apenas subliminarmente. O Epílogo d’O tatu tem três quadrinhas elaboradas pelo autor. Dessas, cito duas, na tentativa de exemplificar a cosmovisão carnavalesca: “Acabou-se o rimance. / O rimance acabou: / o rimance não se acaba, / só acaba quem falou. // Todos têm alguma coisa / comovente pra falar: / conta, conta, companheiro / e não pares de contar”. Terminando este item: segundo Bakhtin, “a carnavalização não é um esquema externo e estático que se sobrepõe a um conteúdo acabado, mas uma forma insolitamente flexível de visão artística, uma espécie de princípio heurístico que permite descobrir o novo e inédito” (1981, p. 144).

Em conclusão: a obra literária de Schüler, além de muitos outros méritos, marcase pela poética de reconstrução, com adjacências na tradição literária ibérica e penetração na recente tradição literária do RS. Enfim, a reconstrói.

Referências

ASSIS, J. M. Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Trad por Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

SCHÜLER, D. A poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto; IEL, 1987.

_. A prosa fraturada. Porto Alegre: UFRGS, 1983.

_ O tatu. Porto Alegre: Movimento, 1982.

_. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 198

Obs.: Este material foi apresentado inicialmente durante a 57ª Feira do Livro de Porto Alegre (2011) Integrou a mesa-redonda Os 30 anos de A mulher afortunada e a obra de Donaldo Schüler.

Cícero G Lopes.

Dr em Letras.

www.cicerogalenolopes.com

Cícero Galeno Lopes