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Puxando o fio da memória enquanto ainda dá

  • por

Jorge Rein

Missão quase impossível, para alguém tão vulnerável às amnésias (algumas voluntárias, outras não), puxar pela memória um texto que não seja de ficção. Eram anos sombrios, contradizendo aqueles que asseguram que todo tempo passado foi melhor. Dias da paranoia correr solta, tão real que vez por outra atropelava um escritor.

Então surgiu a ideia, que já estava no ar, porque existiam grupos produzindo e debatendo a escrita, contrapondo a instância coletiva ao ato da criação individual. Associar-se de forma organizada se apresentava como um caminho natural. Logo veio o convite e não pensei duas vezes: antes bem acompanhado do que só. Foi quase um acidente. É que eu andava por perto, mas não reunia nenhuma das duas condições. Não era ainda gaúcho, muito menos escritor. Achava um crime ferir a carne sagrada do churrasco com um espeto e profanava a doçura da língua brasileira em surtos de uma gramática apimentada de sotaque espanhol. Minha convocação para participar da fundação da Associação Gaúcha de Escritores foi uma gentileza de amigos que apostaram que, com o tempo, eu acabaria atingindo a dupla condição. Cumpri pela metade. Me considero gaúcho, dentro de um diluído conceito de pertencimento que é o mais próximo que consigo chegar do patriotismo. E quem sabe algum dia ainda vire escritor.

O rol dos fundadores –salvo a minha exceção– conseguiu ser bem representativo da literatura gaúcha produzida naquela época. Alguns autores, então já consagrados, cederam apenas os seus nomes, emprestando prestígio à nova associação. Mas outros se envolveram ativamente na empreitada e, na soma de esforços, o projeto vingou. Foi assim que tive oportunidade de conhecer pessoalmente não poucos escritores cuja obra admirava. Em alguns casos isso foi um privilégio, mas também não faltaram aqueles que confirmaram um axioma que vale tanto para as artes quanto para os namoros: a graça e o encantamento provocados pela criatura nem sempre podem ser transferidos ao criador. 

Na minha memória, que não é lá aquelas coisas, ocupam um lugar especial os primeiros encontros que a associação promoveu em Garibaldi. Durante o dia, painéis temáticos, às vezes dispensáveis. Um jeito burocrático de deixar passar as horas até chegar a noite, quando a magia das veladas regadas com os bons tintos da serra patrocinava histórias e anedotas fabulosas, demonstrando que é bem curta a distância que separa o escritor do pescador. In vino veritas não chegava a ser propriamente uma mentira, mas com certeza era uma bela ficção.

A AGES chega aos quarenta e tantos, renascida das cinzas graças à teimosia e aos esforços de novas gerações. Quarenta e poucos anos se passaram e eu ainda não aprendi a escrever.  Mas continuo insistindo e, cá entre nós, já consegui enganar algum leitor.