Assinada pela Associação Gaúcha de Escritores (AGES), juntamente com editores de diversos estados do país e entidades do livro, como a Liga Brasileira de Editores (Libre) e a União Brasileira de Escritores (UBE), foi divulgada hoje, 05/05, uma carta aberta questionando atrasos nas compras governamentais de livros no âmbito de programas como o PNLD Literário.
Intitulado “Por um fio”, o documento revela que, desde 2022, as escolas públicas de todo o país estão sem receber livros literários. Somente agora, em fevereiro de 2025, teve início a compra relativa ao PNLD Literário 2022. Os livros do PNLD Literário 2023 sequer foram escolhidos e o setor ainda espera a efetivação dos editais já abertos de 2023, 2024.
Além de mencionar os atrasos e a ausência de um cronograma claro e previsível, os profissionais do livro refletem no texto sobre a democratização do livro e da leitura, sobre a necessidade de políticas públicas sobre mediadores de leitura, bem como sobre as exigências complexas dos editais relacionados aos livros literários.
A Carta Aberta destaca que, enquanto a Unesco nomeia o Rio de Janeiro como a “Capital mundial do livro”, boa parte dos editores brasileiros vivem por um fio, diante do desequilíbrio econômico do setor e da queda de 7 milhões de leitores nos últimos 4 anos. “Escutá-los pode ser o primeiro passo para a virada tão necessária, para quem fez o país merecer tão importante título”, finaliza o documento, assinado também, individualmente, por autoras, autores, editores e distribuidores.
Leia abaixo a carta na íntegra:
“Por um fio
Por ocasião da abertura da última Bienal de São Paulo, em setembro de 2024, quando o ministro da Educação falou sobre os milhões que estavam sendo investidos em compras de livros literários, ficamos realmente sem saber sobre o que ele estava falando. Em seguida, quando o público — em sua maioria editores — aplaudiu entusiasticamente, o desconcerto foi ainda maior. Mas a surpresa não parou por aí. Recentemente, foi divulgado no site do Ministério da Educação um investimento de mais de R$ 122 milhões na distribuição de obras para acervos públicos e bibliotecas. Apesar do volume desses investimentos, o mercado — ou pelo menos parte dele — sequer tomou conhecimento.
Afinal, onde foram parar todos esses milhões destinados a compras de livros?
Essa pergunta, que afeta toda a indústria editorial — em especial, as pequenas e médias editoras voltadas aos livros dirigidos às infâncias e juventudes —, também questiona, de forma direta, as políticas de fomento ao livro e à leitura. Desde 2022, as escolas públicas de todo o país estão sem receber livros. Somente agora, em fevereiro de 2025, teve início a compra relativa ao PNLD Literário 2022.
Esse atraso de mais de três anos e a falta de regularidade nas compras públicas impactam milhões de estudantes, que deixam de ter acesso às novidades do mercado editorial, e comprometem um setor já fragilizado e instável. Dentro do contexto apontado pela última edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil — que revelou uma queda no número de leitores, de 52% em 2019 para 47% em 2023 —, o cenário torna-se ainda mais preocupante.
Na ponta, são as editoras desse segmento que sofrem as consequências de um mercado viciado e dependente das vendas públicas. O que deveria ser um extra, um plus, acabou se transformando, ao longo das décadas e por inúmeros fatores — de ordem econômica e política — em uma das principais formas de sobrevivência nesse mercado. As vendas privadas — no varejo ou diretamente ao público, por exemplo, em livrarias físicas — há muito deixaram de ser um canal promissor e significativo para a maioria dos segmentos editoriais, sendo praticamente inexistentes para a ampla produção de livros infantis e juvenis.
A inversão dessa lógica pressupõe um conjunto de mudanças cuja solução é difícil de visualizar a curto e médio prazo. Seriam necessárias grandes intervenções: desde a aprovação do PLS 49/2015 (Lei Cortez) até o estabelecimento de incentivos e oportunidades comerciais reais para as livrarias (isenção do IPTU, por exemplo). Enfim, mudanças radicais em um mercado que parece ter sido deixado à própria sorte — como comprova a concorrência sem limites da Amazon e das inúmeras licitações públicas que, ao privilegiar exclusividades, limitam drasticamente a participação de outros possíveis editores.
A dependência do mercado do livro em relação às compras públicas foi gravemente prejudicada e se aprofundou nos últimos anos. No caso do PNLD Literário, desde 2022, como já mencionado, as compras mal saíram do papel. Entramos em 2025 com uma execução parcial — ainda se aguarda o acréscimo de 25% proposto pelo governo como forma de compensação — do edital de 2022. Os livros do PNLD Literário 2023 sequer foram escolhidos. Estamos falando de três longos anos de atraso, esperando a efetivação dos editais já abertos de 2023, 2024.
Mas não é apenas a ausência de regularidade que evidencia os problemas que afetam o mercado editorial. Por um lado, a ênfase na literatura como chave para a formação de leitores — defendida pela maioria dos promotores de políticas públicas — foi colocada, há alguns anos, a reboque do livro didático, quando o PNBE (Programa Nacional de Biblioteca Escolar) deixou de existir, dando lugar ao PNLD Literário. Este não é o espaço para aprofundar essa questão, mas não faltam argumentos para demonstrar que o papel da literatura está longe de atender às exigências didáticas. Trata-se de uma discussão de fundo que precisa ser enfrentada, pois compromete diretamente as políticas de formação de leitores. Afinal, as estratégias de formação de mediadores e leitores são desenhadas com base nas concepções e pressupostos sobre leitura, literatura, leitores e seus processos de formação.
Hoje em dia, não basta afirmar a importância de ler. É preciso refletir sobre o que se lê, para que se lê e como se lê. Daí a necessidade imperiosa de formar mediadores e de refletir sobre que leitores se deseja formar. A leitura como instrumento — e não apenas como fim em si mesma — tem potencial emancipador e pode proporcionar visibilidade e voz a uma maioria historicamente excluída e marginalizada. O questionamento do cânone literário oficial em vários segmentos demonstra isso.
Mas os problemas não terminam aqui. Falar em democratização do livro e da leitura pressupõe critérios — de seleção e de qualidade — que, segundo as teorias mais respeitadas sobre o objeto livro, remetem à sua materialidade. A fruição da leitura implica ter em mãos um livro com volume, peso, cheiro, em que todos os elementos — gramatura e tipo de papel, formato, acabamento — têm função tão determinante quanto o texto e a ilustração. Trata-se de um todo inseparável, no qual forma e conteúdo se articulam e casam.
Se essas características materiais desaparecem por exigências “logísticas” ou “econômicas” — adaptação de formato, acabamento, papel —, os livros que chegam às bibliotecas escolares pelo país afora certamente não correspondem aos originais que circulam no mercado privado. Longe de promover uma experiência estética de qualidade, muitos dos livros distribuídos não cumprem seu papel de sensibilizar leitores. A equação quantidade versus qualidade simplesmente não fecha quando se trata de equilibrar compras públicas e formação de leitores.
Retomando o ponto inicial: foram três anos sem compras do PNLD Literário. E, se somarmos a isso a suspensão, em 2023, sem explicações, das compras da Secretaria de Educação da cidade de São Paulo para o Minha Biblioteca — um dos maiores programas depois do PNLD Literário —, podemos imaginar o estado atual do mercado editorial.
As denúncias começam a pipocar na imprensa, não apenas em relação ao fechamento arbitrário do programa da Secretaria de Estado de São Paulo, mas também sobre a falta de transparência apontada em alguns editais municipais país afora. Utilizando recursos do FUNDEB (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), esses editais movimentam dezenas de milhões de reais, por meio de compras de kits e projetos literários negociados por meio de atas de registro de preços — um esquema já amplamente denunciado pela grande imprensa, e que atinge diretamente o setor do livro. O mercado editorial brasileiro é promissor, sim, mas os caminhos para acessá-lo são tortuosos e quase sempre vedados à maioria das editoras.
Os efeitos dessa crise são visíveis: desde o número reduzido de editoras especializadas em livros infantis e juvenis na Feira do livro Infantil de Bolonha deste ano, até o fechamento de editoras com mais de 20 anos no mercado, ou a venda de parte de seus catálogos a grandes grupos editoriais, exclusivamente para garantir acesso às compras públicas. Em contrapartida, assistimos ao surgimento de editoras sem histórico no mercado, publicando volumes inexplicáveis de títulos em ritmo incompatível com as práticas reais do setor. Como foi possível testemunhar, diante do espanto de editoras estrangeiras, selos totalmente desconhecidos têm adquirido direitos de publicação de até 100 títulos de uma só vez, pagando adiantamentos em dólares.
Há indícios de que empresas comerciais passaram a atuar como intermediárias de grandes negócios, em troca da exclusividade na representação de catálogos ou kits pré-selecionados. Assumem o papel de curadores sem conhecimento da área e sem compromisso com a bibliodiversidade, a promoção da leitura ou a formação de leitores. São autorizadas por editais feitos sob medida — nem sempre públicos — e claramente anticoncorrenciais. Essa contaminação só dificulta ainda mais a já árdua tarefa de separar o joio do trigo.
Compreender esse cenário complexo, que aponta para uma possível mudança na configuração do ecossistema do livro, é essencial para que se possa enfrentá-lo e, principalmente, traçar estratégias coletivas para superar esse momento tão difícil, apesar dos muitos discursos em contrário.
Cabe ainda um parêntese importante sobre os preços pagos pelos programas governamentais — muito abaixo dos valores de mercado. Isso se justifica pelas grandes quantidades compradas. Em outros tempos, tais volumes faziam sentido e os preços mantinham certa razoabilidade. Mas esse equilíbrio se perdeu. As negociações tornaram-se cada vez mais duras — em prejuízo, evidentemente, dos editores e dos direitos autorais pagos aos criadores.
Além disso, inscrever um livro no PNLD não é nada fácil — e tampouco barato. Segundo o edital do PNLD Literário Equidade 2026, a inscrição exige a produção de um Caderno de Sugestões para o Educador(a) Mediador(a) com no mínimo 15 páginas, sua conversão em HTML5 e a adaptação ao formato exigido. Isso representa um investimento de cerca de R$ 6 mil por livro inscrito. Quantas editoras podem arcar com esse custo? Quem se beneficia dessas exigências? Por que não selecionar primeiro os livros e, só depois, solicitar os materiais complementares dos aprovados? Por que exigir um investimento às cegas, sem nenhuma garantia de escolha?
Pensamos que tudo isso decorre de desconhecimento sobre o funcionamento do mercado, da realidade das editoras após três anos sem compras institucionais, e do próprio campo do livro, da leitura e da formação de leitores. Será que menos não seria mais? Menos quantidade, mais qualidade, melhor remuneração por exemplar, respeito à integridade das obras, valorização dos direitos autorais e dos criadores?
Pensar em políticas de fomento ao livro requer, entre outras coisas, compreender o ecossistema editorial como um todo. Os editores são os primeiros mediadores — aqueles que decidem que livros serão colocados no mercado, com base em formação especializada e em competências afinadas com as demandas e tendências. Pensar esse processo como uma cadeia interligada, e não como momentos isolados, pode ser um primeiro passo rumo a soluções mais equilibradas para todos os agentes envolvidos.
E sim, queiramos ou não, o pontapé inicial depende dos editores. Sem eles, não há livros. São eles que escolhem — melhor ou pior — conforme seus projetos editoriais, sua responsabilidade com a pauta da democratização do acesso ao livro e à leitura. Talvez seja hora de deixar de tratá-los como simples fornecedores de encomendas editoriais, com quem só se negocia e exige, e começar a considerá-los como parceiros fundamentais.
E, enquanto a Unesco nomeia o Rio de Janeiro como a “Capital mundial do livro”, boa parte dos editores brasileiros vivem por um fio, diante do desiquilíbrio econômico do setor e da queda de 7 milhões de leitores nos últimos 4 anos. Escutá-los pode ser o primeiro passo para a virada tão necessária, para quem fez o país merecer tão importante título.
Assinam este texto:
ARL – Academia Rio-Grandense de Letras
AGES – Associação Gaúcha de Escritores
LIBRE – Liga Brasileira de Editoras
UBE – União Brasileira de Escritores
Adriana Maciel, Editora Numa (RJ)
Alessandra de Lazzari, Editora Edelbra (RS)
Alessandra Pires, agência O Agente (SP)
Alexandre Brito, autor e compositor (RS)
Airton Ortiz, jornalista e escritor (RS)
Alessandra Roscoe, autora, Uniduniler todas as letras (DF)
Alexandre de Castro Gomes, autor e professor de literatura (RJ)
Alexandre Martins Fontes, WMF Martins Fontes (SP)
Ana Cândida Costa, Editora Musa (SP)
Ana Maria Santeiro, agente literária (RJ)
André Luis Alt, BesouroBox (RS)
Ângela Mendes, Editora Barbatana (SP)
Anita Prades, autora (SP)
Annete Baldi, Editora Projeto e Editora Antes (RS)
Antônio Schimeneck, autor, editor e distribuidor, AMA Livros (RS)
Bel Santos Mayer, autora (SP)
Bruno Zeni, Editora Quelônio (SP)
Caroline Hornos, Selo Emília (SP)
Cátia Simon, autora (RS)
Clô Barcelos, Libretos Editora (RS)
Cris Alhadeff, ilustradora (RJ)
Cristina Serra, autora (RJ)
Daniel Ferreira da Rocha, Editora Dimensão (MG)
Dilan Camargo, autor (RS)
Dolores Prades, Editora Selo Emília (SP)
Edimilson de Almeida Pereira, autor (MG)
Edith Derdyk, autora (SP)
Eliandro Rocha, autor (RS)
Envio Vargas, autor (RS)
Fernando Vilela, autor (SP)
Flâvia Côrtes, autora (RJ)
Giba Pedroza, autor (SP)
Gilmar Cassol, Editora Cassol (RS)
Gisele Federizi, autora (RS)
Gisele Zincone, Editora Griphus (RJ)
Gláucia de Souza, autora (RS)
Gustavo Faraon, Dublinense (RS)
Ítalo Cajueiro, ilustrador (DF)
Ivana Jinkings, Boitatá (SP)
Jane Tutikian, autora e professora (RS)
Janine Durand, autora e mediadora de leitura (SP)
João Carneiro, Tomo Editorial (RS)
João Xavier, Editora Zouk (RS)
Juliana Pádua, autora (SP)
Laura Di Pietro, Roça Nova Editora/Tabla (RJ)
Larissa Kouzmin-Korovaeff, Semente Editorial (RJ)
Leonardo Chianca, Editora Pulo do Gato (SP)
Leticia de Castro, Editora Veneta (SP)
Liana Timm, autora e artista (RS)
Lilian Rocha, autora (RS)
Lizandra Magon de Almeida, Editora Jandaíra (SP)
Luciano Pontes, ilustrador (PE)
Luis Gomes, Editora Sulina (RS)
Márcia Ivana, autora e professora (RS)
Maria Alice Bragança (RS)
Maria Carpi, autora (RS)
Mariana Zanetti, ilustradora (SP)
Marília Pirillo, autora (RJ)
Marisa Moura, agência Zigurate (SP)
Myriam Scotti, autora (AM)
Neide Almeida, autora (SP)
Neli Germano, autora (RS)
Noelly Russo, Sopa Editora (SP)
Pablo Morenno, autor e editor, Phisalys Editora (RS)
Patrícia de Arias, autora (RJ)
Patrícia Langlois, escritora e ilustradora (RS)
Patrícia Vasconcellos, Editora Pó de Estrelas (PE)
Paulo Fochi, Instituto OBECI (RS)
Paulo Lima, L&PM Editores (RS)
Paulo Verano, Editora Barbatana (SP)
Rafael Guimaraens, jornalista e escritor (RS)
Rafael Silvano, Editora Madrepérola (PR)
Ricardo Benevides, autor (RJ)
Ricardo Prado, escritor (SP)
Rosana de Mont’Alverne, Aletria Editora (MG)
Rosana Martinelli, Editora Quatro Cantos (SP)
Rosangela Vieira Rocha, escritora (DF)
Sandra Santos, autora e tradutora (RS)
Sérgio Alves, Caraminhoca (SP)
Simone Paulino, Editora Nós (SP)
Stela Barbieri, autora (SP)
Stela Maris Rezende, autora (RJ)
Telma Braga, autora (DF)
Tito Montenegro, Arquipélago Editorial (RS)
Thomás Daniel Vieira, Coragem (RS)
Truduá Dorrico Macuxi, autora (RR)
Valéria Pergentino, Editora Solisluna (BA)”